Expresso

Chegou ‘A Hora’

Por Lucca Accioly

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Chegou ‘A Hora’
‘A Hora’, obra do pintor carioca Bernardo Sarmento, enviada ao Jornal O Serrano

Um quadro que retrata uma face com aspectos de espanto, como podem ver. Eis a nossa obra, A Hora, de Bernardo Sarmento. É uma tela e, sendo tal, deveríamos discutir seus elementos-chave, como as formas brutas, a escolha pelo grotesco, seu jogo entre luz e sombra. Aliás, esse contraste talvez seja o que há de mais fundamental em sua linguagem. Mas, creio que devo valer-me apenas duma simples descrição. Afinal, toda a técnica do pintor não é justamente um caminho para o que se vê nessa imagem?


Um senhor ocupa toda a direita da tela. Por um breve instante, temos a impressão de que ele nos encara — uma impressão apenas. Nenhuma de suas rugas nos dá uma única pista daquilo que olha. Seu marcante nariz nada revela do pavor que seus olhos denunciam. Ao menos, podemos agradecer à sombra de seu pescoço: aparentemente, alguma luz vem de trás. Seja lá o que este velho observa, está devidamente iluminado. Assim, que ninguém culpe sua idade, não há razão para supor cegueira.

Acontece que uma segunda sombra sobrepôs-se, ou foi sobreposta pelo pintor. Importa mais o fato de que há uma outra sombra, que nada deve à primeira. Ela nos confessa a existência de alguém de frente para quem parecia nos contemplar. Visível ainda sob as costas do homem, a mancha de escuridão aponta para uma figura luminosa. Alguém, diante deste senhor; algo que brilha, mas que assusta. Duas fontes de luz que se chocam, acompanhando duas presenças que se cruzam.

No segundo plano, Sarmento nos mostra o que está além do primeiro. O mais evidente é a altura, como se nosso observador tivesse sido surpreendido por uma coisa que lhe é mais elevada. Mas talvez não seja coisa nenhuma, e sim efeito das luzes, que, embora não sejam de todo sentido, são de algum. Seus olhos, aterrorizados, não olham para cima, mas perfeitamente para frente. Nisto, temos um grande problema.

Daqui em diante, tudo está chegando ao seu fim. Ora, o encontro de duas sombras sussurra ao espectador o que acontecia antes de sua chegada. Sua serventia diz respeito ao passado? Enfim, a primeira coisa que vimos nos fez ler cada detalhe do rosto do velho. Quem seria inocente de imaginar coincidência? Nossos olhares se olharam, e isso só é possível no presente. Pois bem, resta-nos o futuro que, assim como o que paralisou este senhor, não podemos ver. É surpreendente, inclusive, o quanto essa coisa é democrática.

Ronda por todas as bandas desde mil e uma horas e mil e um minutos antes do primeiro ponteiro de relógio. Às vezes se atrasa para o almoço; muitas vezes, se adianta para o jantar — mas A Hora sempre chega.

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