Expresso

A poesia como caminho para o ser, na visão de Eugénio de Andrade

No excerto de 'Rosto Precário', o poeta português propõe a palavra poética como ato de revelação e entrega à verdade interior, numa busca por reconciliação e sentido

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A poesia como caminho para o ser, na visão de Eugénio de Andrade
Para Eugénio de Andrade, a poesia é mais que estética — é moral, desejo e revelação | Reprodução

No tempo frenético em que vivemos, o espaço reservado à poesia parece, à primeira vista, cada vez mais estreito. Afinal, o que pode um poema diante da avalanche de estímulos e da lógica da produtividade? Mas talvez seja exatamente nesses tempos que mais necessitamos da palavra poética — aquela que revela, escava e mergulha.

Eugénio de Andrade, poeta português nascido em 1923 e falecido em 2005, é um dos nomes que compreendeu profundamente esse papel da poesia como ato de revelação. Em Rosto Precário, obra publicada pela primeira vez em 1979, ele oferece uma reflexão visceral sobre a essência do fazer poético. O poeta, segundo ele, não é apenas alguém que escreve versos, mas um ser que se consome no fogo do conhecimento — fogo esse que é também amor. Um amor inquieto, não domesticado, que ousa tocar nas sombras e trazer à tona a própria condição humana, em toda sua contradição e beleza.

Eis o excerto completo:

“O ato poético é o empenho total do ser para a sua revelação. Este fogo do conhecimento, que é também fogo de amor, em que o poeta se exalta e consome, é a sua moral. E não há outra. Nesse mergulho do homem nas suas águas mais silenciadas, o que vem à tona é tanto uma singularidade como uma pluralidade. Mas, curiosamente, o espírito humano atenta mais facilmente nas diferenças do que nas semelhanças, esquecendo-se, e é Goethe quem o lembra, que o particular e o universal coincidem, e assim a palavra do poeta, tão fiel ao homem, acaba por ser palavra de escândalo no seio do próprio homem. Na verdade, ele nega onde outros afirmam, desoculta o que outros escondem, ousa amar o que outros nem sequer são capazes de imaginar. Palavra de aflição mesmo quando luminosa, de desejo apesar de serena, rumorosa até quando nos diz o silêncio, pois esse ser sedento de ser, que é o poeta, tem a nostalgia da unidade, e o que procura é uma reconciliação, uma suprema harmonia entre luz e sombra, presença e ausência, plenitude e carência.”

Este trecho, denso e poético em si mesmo, propõe uma visão radical da missão do poeta. Ele não é um decorador do mundo, mas alguém que perturba — que diz o que ninguém quer ouvir, que revela o que tantos se esforçam por ocultar. Em tempos de narrativas prontas e discursos higienizados, sua palavra pode parecer um escândalo justamente por lembrar aquilo que esquecemos: que o universal pulsa no íntimo, que a luz só é plena quando reconhece sua sombra.

Andrade nos fala de uma nostalgia da unidade — esse anseio profundo por uma harmonia entre o que se fragmentou. Na linguagem do poeta, é o desejo de reconciliar os opostos que nos habitam: o silêncio e o clamor, a ausência e o amor, o vazio e o desejo de plenitude. E se há uma moral na poesia, ela não está em dogmas ou certezas, mas na entrega total a esse caminho incerto de revelação.

Ao ler este excerto, somos convidados não apenas a entender o poeta, mas a nos reconhecermos nesse ser "sedento de ser". Porque talvez, no fundo, cada um de nós guarde em si esse anseio por reconciliação — entre o que mostramos e o que ocultamos, entre o que somos e o que buscamos ser.

A poesia, portanto, não nos oferece respostas. Ela nos devolve à pergunta essencial: o que estamos fazendo com o nosso ser? E nos lembra, como diria Eugénio de Andrade, que só mergulhando nas nossas “águas mais silenciadas” poderemos, quem sabe, encontrar o rumor que nos devolve ao que somos: um rosto precário, mas ainda assim, profundamente humano.

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