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Henrique Vieira Filho é jornalista, escritor, terapeuta, sociólogo, artista plástico, agente cultural, diretor de arte, produtor audiovisual, educador físico, professor de artes visuais, pós-graduado em psicanálise e perícia técnica de obras de arte.
O sol se põe, tingindo de dourado as montanhas que abraçam nossa cidade. Nesse cenário, ao contemplar a beleza local, me pego refletindo sobre o olhar de Sebastião Salgado. A recente partida de um dos maiores mestres da fotografia ainda ecoa forte e me faz imaginar: o que ele, com sua lente única, teria registrado se tivesse caminhado por aqui?
Salgado não buscava o óbvio, nem os clichês turísticos. Seu olhar se voltava às entrelinhas – aos detalhes que o mundo costuma ignorar. Com sua lente, ele temperava a luz e a sombra, capturando a essência da condição humana e a majestade da natureza.
Imagino-o andando pelas ruas de terra, não com a pressa de um visitante, mas com a paciência de um observador. Talvez suas primeiras fotos fossem das costureiras locais: mãos que tricotam lã e crochê com dedicação quase ancestral. Faria foco nos vincos da pele, as unhas segurando a agulha, os olhares concentrados — gestos que revelam sabedoria passada de geração em geração.
Depois, o cheiro de café o guiaria. Não à cafeteria da praça, mas às lavouras dos arredores. Mulheres colhendo grãos sob o sol, homens carregando sacas nos ombros — corpos que estampam a força do trabalho. Ele captaria ali a simbiose entre homem e terra, o suor que rega o sustento.
E a natureza de Serra Negra, então? Ele não se limitaria às paisagens amplas. Seu foco se voltaria ao detalhe: uma orquídea rara num canto esquecido da mata atlântica, um sabiá solitário ao amanhecer, a textura de uma rocha marcada pelo tempo e pela chuva.
Mas acima da vegetação, Salgado seria atraído por nosso maior tesouro: as fontes de água mineral. Captaria o borbulhar cristalino que brota da terra, a pureza intocada, o ritual cotidiano: as filas de moradores, o esforço no transporte dos garrafões, o gesto simples e sagrado de levar para casa a própria fonte de vida.
E talvez, ao fim do dia, ele se sentasse com os que carregam os anos na alma e as histórias nos lábios. Na varanda, ouviria causos antigos e cruzaria prosas com o historiador Nestor Leme. Fotografaria a serenidade de quem viveu e amou, a sabedoria preservada na tradição oral — retratos da alma, do tempo e da permanência da vida.
Sua recente partida reforça a imensidão de sua obra. Por isso, o evento Encantos das Sereias: Cores, Curtas e Cultura em Serra Negra, na Residência Artística, incluiu justa homenagem póstuma. A exposição reúne livros com suas imagens icônicas e obras minhas, também em preto e branco e lançadas em Paris — como tantas de Salgado. Uma confluência de olhares que, cada qual a seu modo, buscou (e continua buscando) a beleza e a verdade na complexidade do mundo.
Impossível encontrar uma foto “sem sal” de Sebastião Salgado: ele temperou a arte da fotografia com humanidade e poesia. E o sabor que deixou é perene.