Henrique Vieira Filho
Henrique Vieira Filho

Henrique Vieira Filho é jornalista, escritor, terapeuta, sociólogo, artista plástico, agente cultural, diretor de arte, produtor audiovisual, educador físico, professor de artes visuais, pós-graduado em psicanálise e perícia técnica de obras de arte.

Colunas

O Pracinha e o Deus dos Mares

Um pracinha na 2ª Guerra Mundial condecorado pelo próprio Deus dos Mares! Na nova crônica, Henrique Vieira Filho revela uma descoberta incrível no acervo de seu tio, Ary Vieira. Uma história que prova que o mito e a aventura resistem a qualquer guerra! #Cronica #AryVieira #Pracinha #SegundaGuerra #NetunoRei #HistoriaViva #SerraNegra #Museu #TradiçãoNaval #Cultura

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O Pracinha e o Deus dos Mares
“Certificado do Império de Netuno”: Acervo do Museu da ReArte
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Comecei esta semana uma aventura inédita aqui na Residência Artística: a catalogação do acervo do meu tio, o saudoso serrano Ary Vieira

Para quem não sabe, ele foi um dos nossos heróis, um pracinha/expedicionário que encarou a 2ª Guerra Mundial. É uma coleção que transcende a história pessoal; é um tesouro de documentos, fotografias e objetos plenos de significados.

Em meio a medalhas, uniformes e documentos militares com carimbos oficiais, um diploma em particular me fez parar a catalogação e soltar um sorriso que ecoou na sala. Quem diria que meu tio, no meio de uma missão de guerra, teria sido condecorado pelo próprio Rei Netuno?

Sim, lá estava ele: o "Certificado do Império de Netuno", datado do 27º dia de setembro de 1944. Para os leigos, é apenas um pergaminho pomposo. Mas,para a tradição naval, é o símbolo máximo da passagem, a prova de que ele havia cruzado a Linha do Equador pela primeira vez. 

O documento atesta que o marinheiro Ary Vieira foi iniciado nos "SOLENES MISTÉRIOS DA ANTIGA ORDEM DAS PROFUNDEZAS", deixando de ser um “pollywog” (novato) para se tornar um leal “shellback” (veterano).

O contraste é de uma beleza absurda e muito humano! Pense bem: em 1944, com o mundo em chamas, a bordo do USS General W. A. Mann em uma "Missão Especial de Importância Histórica", a tripulação parou tudo. Parou a urgência, o medo, a guerra. Eles pararam para realizar um ritual milenar, uma brincadeira séria, onde o capitão assina por Netuno Rei, Governador dos Mares e ordena a todas as Sereias, Golfinhos, Bacalhaus e Serpentes Marítimas que honrem e respeitem o marinheiro Ary Vieira!

Isso me fez refletir. É a prova cabal de que, não importa a seriedade do momento, a humanidade sempre encontra espaço para o mito, para o ritual e para o humor. 

É como se a própria guerra, com sua lógica fria e implacável, fosse obrigada a ceder lugar, nem que por um dia, à lógica do folclore e da celebração da vida.

Meu tio não só serviu à Pátria em uma Missão de Importância Histórica, como foi inspecionado e aprovado pelo Estado-Maior Real de Netuno! E essa, para mim, é a verdadeira condecoração. 

O acervo de Ary Vieira é a prova de que mesmo no meio da maior tragédia humana, a vida, a aventura e a arte de se tornar um "casca grossa" (ou, no caso, um “shellback”) prevalecem!

Em tempo: ainda este ano, abriremos ao público o Museu da Re Arte - Residência Artística do Circuito das Águas Paulista!


IMPERIUM NEPTUNI REGIS

(Império de Netuno, o Rei)

A TODOS OS MARINHEIROS, ONDE QUER QUE ESTEJAM

E a todas as Sereias, Baleias, Serpentes Marítimas, Botos, Tubarões, Golfinhos, Enguias, Raias, Peixes, Caranguejos, Lagostas e todas as outras Coisas Vivas do Mar,

Saudações! 

Saibam que neste 27º dia de  setembro e para a Latitude 00º 00' 00" e Longitude 29º 45 Oeste, apareceu dentro de Nosso Domínio Real o USS General W. A. ​​Mann com destino ao Norte passando o Equador e para uma Missão Especial de Importância Histórica

O referido Navio, Oficiais e Tripulação foram inspecionados e aprovados por Nosso Estado-Maior Real.

E que seja conhecido por todos vós, Oficiais, Fuzileiros Navais, Marinheiros e outros que possam ser agraciados por sua presença que ARY VIEIRA tendo sido considerado digno de ser contado como um de nossos Leais "Shellbacks", foi devidamente iniciado nos SOLENES MISTÉRIOS DA ANTIGA ORDEM DAS PROFUNDEZAS.

Que seja ainda entendido, que em virtude do poder investido em mim, eu por este meio ordeno a todos os meus súditos que lhe mostrem a devida honra e respeito onde quer que ele esteja. 

Desobedeçam esta ordem sob pena de Nossa Real Desaprovação.

Dado sob nossa mão e selo neste 27º dia de setembro de 1944.

(Assinam:)


Davy Jones - Escriba de Sua Majestade

Rei Netuno - Governador do Domínio dos Mares. por seu servo Paul Sylvester Maguire (capitão do USS General W. A. Mann (que assina em nome de Netuno)


Para saber mais:

"Certificado do Império de Netuno" ( "Imperium Neptuni Regis" ou "Ordem de Netuno") é um documento tradicionalmente emitido para marinheiros que cruzam a Linha do Equador pela primeira vez. 

Este certificado marca a iniciação do marinheiro nos "Mistérios Solenes da Antiga Ordem das Profundezas", simbolizando sua transição de "pollywog" (marinheiro novato) para "shellback" (marinheiro experiente). 

A cerimônia de travessia da linha, que acompanha a emissão do certificado, é uma tradição naval que remonta a centenas de anos, envolvendo rituais e celebrações a bordo do navio. 

O certificado da imagem é datado do 27º dia de setembro de 1944, indicando que foi emitido durante a Segunda Guerra Mundial. 

O documento é assinado por "Neptunus Rex, Ruler of the Raging Main" (Netuno Rei, Governante dos Mares Furiosos), e atesta que o marinheiro foi considerado digno de se juntar à antiga ordem.

Finalidade: Este certificado é uma tradição naval, marcando a passagem de um marinheiro novato ("pollywog") para um marinheiro experiente ("shellback") após a travessia do Equador.

Elementos Visuais: O certificado apresenta ilustrações de criaturas marinhas, como sereias em redemoinhos ou montadas em peixes gigantes, tartarugas, camarões, caranguejos, águas-vivas (medusas) e uma figura central de Netuno, o deus romano do mar, com o tridente na mão esquerda e a direita erguida ao alto, em saudação, tendo o sol amarelo brilhantes por trás. Netuno tem dois cavalos às esquerda e mais dois à direita.

Observação: quanto aos cavalos no mar, pode ser um erro quanto à mitologia ou  uma licença poética do artista ao sincretizar duas divindades distintas: a Titã Oceano era a divindade de todas as águas e sua iconografia tradicionalmente o associava aos cavalos representando a força das águas e às alternâncias de comportamento (calmos ou turbulentos); as esculturas na Fontana Di Trevi assim o representa, pois Oceano também era o responsável pelas fontes. 

Já Netuno/Poseidon teve filhos cavalos: o Pégaso, tendo a Medusa como mãe e Árion, filho da deusa Deméter.

Muitos artistas manifestam Netuno junto a hipocampos (hippos:cavalo e kampos: monstro marinho, ou seja, cavalo na porção superior do corpo e cauda e nadadeiras na inferior, muitas vezes puxando a carruagem da divindade. 

Detalhes do Certificado: Inclui o nome do navio, a data da travessia e os nomes dos oficiais que atestam a iniciação do marinheiro na "Ordem Antiga do Mar Profundo".

Assinaturas: Apresenta as assinaturas do capitão do navio, em nome de "Neptunus Rex" (Rei Netuno) de quem é servo, e de David Jones, como escriba, sendo este outro personagem lendário, associado a uma superstição de marinheiros do século XVIII. "Davy Jones's Locker" era uma expressão idiomática que se refere ao fundo do mar, o lugar de descanso final para marinheiros que morrem afogados, enquanto a  lenda popular associava Davy Jones a uma figura demoníaca ou divindade da morte para os marinheiros.

O ritual do batismo, na passagem do Equador - fonte das imagens: https://segundaguerra.org

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