Ibraim Gustavo
Ibraim Gustavo

Jornalista, pós-graduado em Marketing, MBA em Comunicação e Mídia, e MBA em Empreendedorismo e Inovação. Empreendedor, é sócio-fundador da Freestory – A primeira plataforma do Brasil de autodescrição com storytelling, IA e IoT. Com formação em Profissões do Futuro (O Futuro das Coisas) e no Programa de Capacitação da Nova Economia (Startse). É também músico, escritor, roteirista e storyteller.

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Serra Negra Para os Serranos: Episódio 8: Casa do Nazista - Visitando os porões da história

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Serra Negra Para os Serranos: Episódio 8: Casa do Nazista - Visitando os porões da história
Residência no Bairro do Barrocão, na Rota Turística do Alto da Serra, foi pensada e planejada por nazista que serviu em Auschwitz | Ibraim Gustavo Santos
Serra Negra Para os Serranos: Episódio 8: Casa do Nazista - Visitando os porões da história
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Por Ibraim Gustavo Santos

“Nós sabemos que eles se estabeleceram por um longo período aqui na nossa cidade. Depois que ele fugiu da Alemanha, aqui (Serra Negra-SP), foi um dos lugares que ele mais permaneceu” (Trilha dos Ratos, documentário, 2020).

Submarinos, navios e outras embarcações lotadas zarpavam dos portos europeus carregados de produtos, alimentos e outros suprimentos, mas acima de tudo, pessoas. Para entrar em um novo país e ser aceito como novo residente ali, é necessário, antes de tudo, a documentação. De difícil acesso para muita gente, especialmente quando se tratam de criminosos de guerra, alguns dos mais tenebrosos personagens da história humana alcançaram essa benesse por meios considerados oficiais, importantes e até mesmo sagrados.

O documentário Trilha dos Ratos, dirigido pelo cineasta Marcelo Felipe Sampaio, com produção da MS Pictures e do historiador de Monte Alegre do Sul, Pedro Burini, retrata a passagem de nazistas pelo Brasil, e mais especificamente por Serra Negra.

O Nazismo em solo serrano

“Serra Negra tem um quê especial. Ela se parece uma cidade europeia. No inverno, ela tem um clima mais voltado ao europeu, é muito frio. Temos aqui também a cultura cafeeira, a agricultura muito forte por aqui. Muita gente diz que o turismo é bastante forte, e é. Realmente, é uma das molas-mestras do município, mas a agricultura é fortemente explorada aqui na nossa cidade. E você percebe isso inclusive no brasão do município, que tem duas ramas de café nele, e o café continuou sendo uma das economias mais fortes aqui da região” (Trilha dos Ratos, documentário, 2020).

Caminhar pelas ruas e avenidas, parar para conversar nas esquinas e sentar-se em um dos muitos bancos espalhados pelas serenas praças serranas não parece amedrontador - e de fato, não é. Nunca foi. Pelo menos não é essa a percepção que temos aqui. Violência não está entre nossas maiores preocupações. Levante a mão aquele que nunca deixou o carro aberto na rua para dar uma paradinha em alguma loja do comércio; ou então, quem nunca esqueceu de trancar a porta de casa e perceber ao acordar no dia seguinte, que sequer uma palha foi alterada. Aqui é comum ver as pessoas caminhando tarde da noite portando seus celulares. Não há medo, e essa é uma característica marcante, uma força imensurável que contribui com o turismo local, dando segurança não só aos que residem aqui, bem como àqueles que vêm nos visitar.

Não obstante, a encarnação do terror também já passou por aqui. E fez morada neste solo, mais precisamente, onde essa cidade nasceu - e onde nasceu também a série Serra Negra Para os Serranos: o Bairro das Três Barras, na Rota Turística da Fundação.

Uma figura macabra, de rosto decrépito e braços estendidos, segura em uma das mãos um livro onde estão descritas as sentenças do pecador e em outra, um fruto vermelho, e proibido. Quando abertas, as palmas das mãos (são seis) exibem olhos tenebrosos, que testemunham os atos dos infieis. Com sete asas de cada um dos lados do corpo magro o ser lúgubre se apresenta aqueles que se transviaram da verdade e da justiça em sua vida terrena: Azrael, o enviado por Javé para coletar as almas é conhecido na tradição judaica como o responsável por levar os vivos à morte, separando a alma do corpo, acompanhando-a até o seu destino final. Ele também atende pelo nome árabe Malak al-Maut, a mesma figura, mas na tradição islâmica.

Filho de Nix (a noite) e Érebo (as trevas), a personificação grega da morte pacífica é registrada como Tânato (em grego: Θάνατος). Suas irmãs, porém, carregavam em si muito mais terror: as Keres gregas. Daemones (espíritos) femininos da morte violenta na mitologia, representadas como figuras sombrias com dentes e garras afiadas, prontas para executar.

Na Europa, a brutalidade e a escalada da Peste Negra (peste bubônica) criaram uma necessidade cultural de personificar a morte, tornando-a uma figura familiar e onipresente na arte e no folclore da época. Popularmente conhecido como Grim Reaper, o Ceifador carrega uma foice (ou gadanha), uma ferramenta agrícola usada para ceifar ou colher. Neste caso, as almas. Em algumas representações, o Ceifador também carrega uma ampulheta, simbolizando o tempo de vida que se esgota para cada pessoa.

Todos eles, cada qual em sua cultura e período histórico distinto, representam o chamado “Anjo da Morte”. Da Europa para o mundo, da mitologia para a realidade, e das obras de fantasia e religião para os livros de história, a encarnação do Anjo da Morte tinha nome, rosto, e um cargo de relevância durante o Terceiro Reich alemão, comandado por Adolf Hitler: Joseph Mengele, médico em Auschwitz, responsável pela morte de milhares de seres humanos, incluindo crianças, vítimas de seus experimentos mais sombrios. O Anjo da Morte fugiu da Alemanha, atravessou o oceano, e viveu em Serra Negra.

Antes de vir à Serra Negra, na década de 1960, Mengele simplesmente desapareceu de Auschwitz no fim da Guerra, em 1945, e permaneceu escondido por quatro anos na Alemanha. De lá, partiu para a Áustria, de onde empreendeu sua fuga para a América do Sul. A jornada do nazista pela região teve início na Argentina, onde, com o nome de Helmut Gregor, foi recebido pelo presidente da época em sua residência oficial, Juan Domingo Perón, de acordo com o pesquisador e escritor Uki Goñi, de "A Verdadeira Odessa" (editora Record, 2004, 448 págs.). Sentindo-se inseguro na Argentina após a captura do SS-Obersturmbannführer Adolf Eichmann pelas mãos da Mossad, Mengele parte para o Paraguai, onde recebe a naturalização do país com apoio do governo do ditador Alfredo Stroessner. Do Paraguai para o Uruguai, a última parada de Mengele antes de chegar ao Brasil, o médico nazista se casa com a própria cunhada, assinando os papéis com seu nome verdadeiro, com o objetivo de manter em sua posse a herança da família na Alemanha.

E como a história não pode morrer, ainda que os homens tentem e se esforcem para apagá-la, seus amantes, os historiadores, treinados com técnica e metodologia para o ofício, vão em busca das respostas e se empenham em trazê-la à tona sempre que algum elemento busca enterrá-la. Em nossa região, um desses desbravadores é Pedro Burini, historiador nascido em Monte Alegre do Sul-SP, e que dedicou grande parte da sua vida a estudar a trilha dos ratos - os passos dos nazistas que fugiram da Alemanha e da Europa após o fim da Segunda Guerra Mundial: “Posso colaborar um pouco mais para essa história de Serra Negra que é pouco falada por aqui. Hoje em dia nós ainda temos a possibilidade de ver essas culturas materiais, de presenciar o que esses indivíduos fizeram aqui em Serra Negra, personagens que foram engrenagens do holocausto e que tiveram um tempo da sua vida pós-guerra aqui na cidade. Portanto, as pessoas que fazem a visita guiada ou que conhecem o livro ‘O Anjo da Morte em Serra Negra’, têm contato com essa história. E mesmo fora de período e de contexto, trata-se de um capítulo importante para nunca nos esquecermos, principalmente pelo impacto histórico que o holocausto e a Segunda Guerra Mundial tiveram, e o quão perigoso é um regime totalitário e sem limites quando está no poder. O meu trabalho de pesquisa teve início a partir de um interesse pessoal muito grande nesse assunto, seguido de uma possibilidade de abordá-lo perto de minha casa, já que eu sou de Monte Alegre do Sul-SP, além de ser o tema central do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) da minha Graduação em História pela Fundação Municipal de Ensino Superior de Bragança Paulista (FESB). assunto, como um todo que envolve o nazismo em Serra Negra, é dotado de uma qualidade histórica, de uma verdade histórica. É fato sabido que existiram nazistas aqui na região, e quando comecei a pesquisar, considerei que era algo interessante para me aprofundar, o que vem acontecendo desde 2006, principalmente me debruçando em fontes bibliográficas e, posteriormente, percebi que esses nazistas precisavam de pessoas para trabalhar para eles, de mão de obra local. E essas pessoas eram migrantes italianos, e famílias Salzani, Nunciaroni, entre outras, gente que estava perto, e acabou trabalhando para eles nas suas lavouras de café”, comenta Pedro Burini.

O esconderijo

Espalhados pelo mundo, o principal destino desses elementos (por escolha própria e planejamento) foram países da América do Sul, especialmente Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai e Brasil. E caso o leitor não tenha conhecimento do fato, este país, não por acaso, foi sede do maior partido nazista do planeta fora da Alemanha. E Serra Negra, no interior do país, num mundo ainda não globalizado, era o local perfeito para esses homens se esconderem e levarem uma vida tranquila, e fugindo da Mossad, a agência de inteligência de Israel, cujo nome completo é Instituto de Inteligência e Operações Especiais (HaMossad le-Modi'in le-Tafkidim Meyuḥadim).

Destino desconhecido, montanhas, mata fechada, ruas sem asfalto, rede de eletricidade precária, pouco policiamento, escassez de meios de comunicação e apenas um táxi para atender a todo o município. Essa era a Serra Negra de 1961: “Precisamos levar em conta o contexto. Quando eles estavam aqui, existia apenas um táxi em Serra Negra. A cidade era muito menor, e por isso mesmo todos os conheciam. Mas as pessoas não tinham as informações que nós temos hoje, até porque, a própria mídia era diferente naquela época, não se tinha a quantidade de notícias que se tem hoje, e não havia acesso facilitado à elas por aqui. As famílias não possuíam aparelho de televisão, apenas rádio, e uma boa parte da população não sabia ler nem escrever, sendo um contexto e uma realidade bem diferentes dos dias de hoje, muito campesina e rural. Inclusive, aqui na torre da casa o visitante pode ver uma foto que mostra o único táxi que operava em Serra Negra. Bem, era o lugar perfeito para nazistas se esconderem na época”.

Durante as suas pesquisas, Pedro Burini descobre que outro estrangeiro “que falava aquele idioma deles, lá”, também era morador da cidade, e figura ilustre na região da Rua Visconde do Rio Branco, no Centro: “Um dos vizinhos de Mengele, o Sr. Pedro - do Sítio da Ponte Caída - dizia que havia outro alemão que vinha até o sítio e que ‘falava naquele idioma deles lá’. Depois disso, fui coletando mais fontes que também citavam esse outro alemão, que era ninguém mais, ninguém menos que Gunther Schouppe. Foi assim que cheguei até à propriedade dele (no Bairro do Barrocão), onde também vi uma torre, e isso me chamou a atenção: São dois nazistas que trabalharam em Auschwitz, sobreviveram à guerra, vieram para outro continente, para a América, vieram para o mesmo país e para a mesma cidade. E esses dois indivíduos construíram torres de observação em suas casas. Só quem acredita em contos de fadas para achar que se trata de uma coincidência”.

Edifícios de tijolos à vista e telhados de 2 águas (de forma em V) na cor vermelha, a cor do sangue. Edificações térreas, de dois ou três andares, com muitas janelas por todos os lados. O cercado ao redor das construções inibe a entrada dos pedestres que percorrem a Stanisławy Leszczyńskiej, a principal via que leva os cerca de 2 milhões de turistas anualmente do mundo todo à conhecerem o ponto mais visitado de Oświęcim, no sul da Polônia, onde foi instalado o complexo de campos de concentração e extermínio de Auschwitz-Birkenau. As cercas, que hoje protegem o Centro Internacional para a Educação sobre Auschwitz e o Holocausto no Museu Estatal de Auschwitz-Birkenau, antes serviam para impedir que de lá escapassem presos sentenciados ao trabalho forçado e à morte.

Então, partindo do pressuposto de que não se trata de uma coincidência, podemos traçar a rota dos ratos: Mengele e Gunther nasceram na Europa. Serviram ambos ao Estado Alemão do Terceiro Reich. Foram enviados para trabalhar na Polônia. Mais precisamente, no sul do país, justamente em Oświęcim. Mais que isso, trabalharam em Auschwitz-Birkenau. Juntos. No Forno 2. Alguns anos depois, o Anjo da Morte resolve fugir, e aponta no mapa o destino escolhido: América do Sul. Gunther também resolve fugir, para o mesmo lugar. O tempo passa, e ambos vêm ao Brasil, ao interior de São Paulo. A Serra Negra. Recapitulando: De Oświęcim à Serra Negra, num prazo de aproximadamente uma década. O que os separa? Duas montanhas e um vale entre elas. Mengele compra uma casa. Gunther também. No meio do mato. Idem. O primeiro constrói uma torre nela. Gunther também: “Olha, a história vai julgar isso, mas o meu trabalho mostra bem que existem tantas cidades, não só aqui no Brasil, mas como no mundo inteiro, e eles acabaram fazendo isso aqui em Serra Negra. Eu interpreto esse fato como uma fonte primária, uma fonte material, algo tangível que esses nazistas deixaram por aqui”, argumenta Burini.

Entrando na toca do coelho

“A ‘toca de coelho’ é uma expressão originária do livro Alice no País das Maravilhas (1865), escrito por Lewis Carroll. No início da história, Alice, a protagonista, segue um coelho branco e acaba caindo em uma toca, que a leva a um mundo completamente novo e estranho, repleto de seres fantásticos e acontecimentos ilógicos. Desde então, a toca de coelho tornou-se uma metáfora amplamente usada para descrever um caminho que leva a algo inesperado e desconhecido, muitas vezes com implicações mais profundas do que inicialmente aparenta”.

Enquanto Alice penetra a toca do Coelho que a levará a jornadas de autoconhecimento e de amor próprio, adentrar à residência onde morou um nazista é um convite para conhecer as profundezas da história humana, em um de seus mais nefastos capítulos.

O historiador comenta quais os fatos mais relevantes para quem é apaixonado por história, para quem quer conhecer mais sobre a Segunda Grande Guerra, e por quem quer mergulhar na história do mundo, num parágrafo escrito em solo serrano: “A torre, a casa em si, que é feita a partir das ideias de um nazista, a arquitetura da construção, entre outros fatores. A possibilidade de se explorar isso tão próximo à nossa é algo único. Como historiador, minha intenção e meu sonho é transformar esse local em um Museu do Holocausto do Circuito das Águas Paulista. Primeiramente porque seria uma afronta a um nazista, e depois, porque é um endereço único, ímpar, que mostra que a história possui uma variação muito grande. Culturalmente, implementar um Museu do Holocausto na antiga casa de um nazista seria informativo, enriquecedor e uma oportunidade para desconstruir totalmente essa ideologia e mostrar que o mal não vence. E não só isso, seria também uma fonte de renda a mais para o município, especialmente como atrativo turístico é histórico. Não é qualquer lugar que tem isso”, defende o historiador, que fala que os serranos devem explorar a história para convencer de que a história pode não ser bela, mas precisa ser contada. Segundo ele, no Brasil dispositivos semelhantes existem apenas em Curitiba, no Paraná, e em São Paulo, capital”.

O lugar seria perfeito para um vídeo viral de imobiliária nas redes sociais: “Uma ampla sala de estar equipada com lareira, e logo na sequência, quartos, cozinha e banheiro, além de uma sacada com vista panorâmica. A escada de madeira leva ao segundo andar, com espaço para aquecedores alemães”, diria o vídeo. O único inconveniente, é que o andar superior é uma torre de observação feita por um nazista. Para Burini, não se trata de uma casa, mas de uma fortaleza, e a presença de um bunker no subsolo da residência atesta a suspeita: “Nós podemos observar que essa casa é cheia de grades, inviabilizando a entrada de pessoas estranhas aqui. Além disso, todos os acessos de entradas e saídas foram construídos em arco, bem como as janelas das torres das duas casas, preservando a arquitetura europeia. Outro fator interessante é que é possível andar em círculo pelo eixo central da casa, num giro de 360 graus, saindo da sala, passando pela cozinha, e voltando para a sala. Essa estrutura me faz refletir que, se eu consegui observar isso, talvez não seja apenas uma coincidência, antes, uma estratégia militar”.

Na propriedade existem duas enormes piscinas, uma do lado de fora, e outra na parte de dentro, no subsolo, onde está também um cofre, que Burini considera um bunker: “E o último lugar é o bunker, uma estrutura subterrânea que fica embaixo da casa, e que tem dois cofres e uma forja, onde eles provavelmente derretiam algum metal para poder transformar em dinheiro”.

A riqueza física da casa reflete a preciosidade histórica que ela carrega. Segundo Burini, existe a possibilidade de o local ser mais que uma residência, antes, servindo como um ponto de encontro: “Essa casa é muito grande para apenas duas pessoas morarem, porque a Maria Schoupper, esposa de Gunther, vivia em outra casa, aqui mesmo na propriedade. Ela era cadeirante, tendo uma possibilidade física bem mais baixa, com grande dificuldade para se locomover, enquanto ele morava aqui com a filha, Alice Schoupper. Os vizinhos e as pessoas que trabalhavam para ele relatavam justamente isso, que vinham muitas pessoas ‘de fora’, e algumas traziam seus próprios empregados. Outra afirmação é de que eles ficavam mais na parte de baixo. É um consenso de que se trata de uma casa de tamanho exagerado para duas pessoas somente”.  

O passeio começa com a visita ao interior do imóvel, indo até à torre de observação, onde Pedro mantém uma exposição de fotos que os próprios nazistas tiraram em Serra Negra. A presença de uma torre na casa pode indicar algo? Eles tinham medo?

O Quarto Reich?

No dia 10 de agosto de 1944, portanto alguns meses antes do fim da Segunda Grande Guerra, e meses depois do Dia D, o plano de um dos maiores saques da história da humanidade repousava solene sobre uma mesa em Paris, na França. À cabeceira dela estava sentado Martin Bormann, 1º-secretário de Hitler, e que fugiu para a América do Sul. Assim, de acordo com os relatos mais recentes de historiadores, teria nascido uma das mais poderosas, influentes e milionárias organizações do século passado: a Organisation der ehemaligen SS-Angehörigen, ou em português, a Organização de Ex-Membros da SS, mais conhecida como a temível Odessa.

O saque da Europa foi uma característica da própria Alemanha nazista durante a guerra, através da pilhagem sistemática de bens, como ouro, joias, propriedades e até obras de arte dos países ocupados. Todo esse dinheiro, além de sustentar a tirania, seria usado também num contexto do pós-guerra, quando, foragidos, os ex-combatentes nazistas precisariam dele para sobreviver além-mar. O destino? América do Sul. O meio de transporte: navios e submarinos.

A literatura afirma que a intenção era justamente seguir o sonho do comandante máximo, agora com o apoio de governos e outras instituições latino-americanas, como mostra o dossiê “Operação Odessa: A Fuga dos Criminosos de Guerra Nazistas Para a América Latina Após a Segunda Guerra Mundial e os Caçadores de Nazistas”, do doutor em História pela Universidade Federal do Paraná, Marcos Eduardo Meinerz:

"Em 1977, o austríaco Erich Erdstein (1977) publicou no Brasil o livro “Renascimento da Suástica no Brasil”, no qual relata as mais incríveis histórias enquanto caçava o “anjo da morte”, Josef Mengele, pela América do Sul, ao mesmo tempo em que denunciava a existência de uma conspiração para a formação do IV Reich no continente" (Renascimento da Suástica no Brasil, livro, 1977, pg 51).

"Semelhante a Erdstein, Ladislas Farago também se apresenta como caçador de nazistas. No livro, o autor narra suas aventuras enquanto seguia o rastro de Martin Bormann pela América Latina ao mesmo tempo em que também denuncia a possível formação do IV Reich pela região, que seria comandado pelo 'braço direito' de Hitler" (Renascimento da Suástica no Brasil, livro, 1977, pgs. 52 e 53).

Pesquisas e levantamentos nos revelam que toda essa logística dependia de uma estrutura muito bem organizada para efetuar a transposição desses bens e desses materiais, além de muito dinheiro para financiar a mudança de país de milhares de nazistas para que pudessem viver com uma avantajada aposentadoria e, sobretudo, de mão de obra qualificada e especializada, encontrada, principalmente, em grandes empresas e multinacionais, e em outras instituições renomadas e respeitadas, como a Cruz Vermelha e o Vaticano: “A logística efetuou-se através de empresas multinacionais e de instituições com ramificações globais, lavando e esquentando dinheiro e recursos saqueados da Europa. Não esquecendo que o Vaticano e a Cruz Vermelha emitiam passaporte para todo esse pessoal, e o Vaticano dava auxílio ao estabelecimento de nazistas na América do Sul, ajudando muito essa gente. Não sabemos exatamente até que ponto esse financiamento veio, mas o roubo, de fato aconteceu, essa transferência de recursos foi efetivada quando a guerra ainda estava em curso na Europa. Por meio dos parceiros da Odessa, nazistas desviaram recursos desses países ocupados para financiar um período e uma vida pós-guerra, além-mar. Quando alguém está fugindo precisa de muito dinheiro. Voilà! Eles tinham como roubar e tinham como trazer”.

“Historicamente, a Trilha dos Ratos é o ato desses nazistas saírem da Europa e virem à América. Eles usavam a Igreja Católica, e vieram ao Brasil depois de 1948 e 1949. Gunther, o dono de uma das casas, não foi diferente: ele acabou vindo à Serra Negra - um dos redutor de nazistas pós-guerra - e se estabeleceu aqui com sua família” (Trilha dos Ratos, documentário, 2020).

Josef Mengele, formado em Filosofia e em Medicina; Tenente Coronel das SS e médico do campo de concentração de Auschwitz, era  procurado por seus experimentos com os prisioneiros dos campos. Ingressou no país [Argentina] em 20 de junho de 1949 com passaporte da Cruz Vermelha Internacional Nº 100.501 com o nome de Helmut Gregor, com o qual obteve a cédula de identidade da Polícia Federal Nº 3.940.484. No mês de novembro de 1956, apresentou sua certidão de nascimento legalizada e certificada pela embaixada da República Federal da Alemanha em Buenos Aires, solicitando a retificação do seu nome. Desta maneira obteve a cédula de identidade da Polícia Federal Argentina, com o mesmo número que a anterior com o nome de Mengele, nascido em Günsburg, província de Baviera, em 16 de março de 1911 (Renascimento da Suástica no Brasil, livro, 1977, pgs. 49 e 50).

A torre

“Os dois construíram uma grande da sua vida aqui, depois de Auschwitz, residiram aqui por bastante tempo, um período considerável, e construíram torres. As duas casas eram próximas, de certa forma, uma da outra, separadas apenas pelo Alto da Serra [...]. E é isso que chama a atenção dos moradores, historiadores e pesquisadores aqui na nossa cidade” (Trilha dos Ratos, documentário, 2020).

Poderia o Anjo da Morte ter medo? Fugir de casa, abandonar o posto onde ostentava todo o seu poderio, e vir refugiar-se nas montanhas da fria Serra Negra da década de 1960 pode ser um indicativo da resposta: “Temos conhecimento de que a torre é uma cultura material que os dois nazistas sintetizaram aqui. Porém, como ambos passavam muito tempo nelas, mostra também uma intenção de vigia, reproduzindo, talvez, a vivência em Auschwitz, como mostra o cartaz afixado na parte superior do cômodo, onde o visitante vê uma torre bem na frente da entrada do campo de concentração na Polônia”.

Os relatos serranos não revelam - e nem poderiam, pela ausência de informação - o que era discutido nesses encontros entre os nazistas que vieram à Serra Negra. Todavia, testemunhas presenciais se referem a esses eventos como agrupamentos de amigos, onde, não raramente, cenas aterrorizantes e cinematográficas eram vistas por vizinhos e por quem trabalhava para eles, provocando em seus autores, episódios de gargalhadas tétricas: ”Em cima da torre, e isso é verdade. Existem bibliografias, existem trabalhos que mostram isso. Quem assistiu ao A Lista de Schindler (filme de 1993), por exemplo, sabe que de cima das torres, soldados nazistas ficavam horas vigiando os prisioneiros dos campos de concentração e, quando fosse o caso, atingindo seus alvos, que eram seres humanos. E aqui em Serra Negra eles brincavam disso, como se estivessem apontando para quem estava andando e trabalhando lá embaixo, falando ‘naquele idioma deles, lá’ e caindo na gargalhada”.

Enquanto o visitante avança pela educação, ele se surpreende com a quantidade de recursos e aparatos tecnológicos da época. Subindo a escada de madeira, chegamos ao primeiro andar da torre, onde já é possível ver as janelas em arco, e um espaço na parede para um aquecedor, situações repetidas também no segundo andar, fator suficiente que nos levar a crer Gunther permanecia bastante tempo na torre de vigia: “Com certeza! E o sistema de calefação realmente funcionava”, relata Pedro Burini, que mostra aos curiosos visitantes as fotos que testemunham a história desses nazistas em Serra Negra. Em ambas as residências, tanto na de Mengele, quanto na de Gunther, as torres com os arcos de destacam, e não é por acaso, já que uma das imagens expostas ali apresenta a torre existente bem em frente à entrada de Auschwitz.

“As medidas da construção tinham que ser feitas para que a pessoa que estivesse na torre avistasse toda a região. As mesmas medidas foram feitas na casa de Gunther Schouppe. Todo cuidado era pouco, porque os agentes da Mossad poderiam chegar a qualquer momento. Nesse meio tempo, Pedro Hungarês andava armado pelas ruas, com sobretudo e chapéu, independente se estava frio ou calor. O medo perseguia Mengele e Gunther, e os atirava numa paranoia e numa depressão profunda” (Trilha dos Ratos, documentário, 2020).

De cima da torre de vigia, é possível avistar quilômetros de distância, o que daria tempo viável para uma possível fuga, em caso de necessidade. Para um lado, é possível avistar o Alto da Serra; para outro, o campo de visão alcança até mesmo outros municípios, como Socorro e Monte Alegre do Sul. No caso de o nazista perceber alguma movimentação diferente nessas estradas de terra, como a chegada de comboios, por exemplo, ele teria tempo suficiente para fugir: “Gunther morou aqui entre 1960 e 1970, e morreu em 1990. Antes de viver aqui, ele morava em uma casa na Rua Visconde do Rio Branco, no Centro, um fato conhecido entre os serranos da época. Durante esse período ele foi construindo essa casa à sua própria maneira. Vale lembrar que essas estradas secundárias que vemos daqui de cima já existiam e eram muito usadas antigamente, por volta da década de 1960, quando a casa foi construída. Portanto, essa torre não é só um símbolo familiar para ele daquela época, mas era algo funcional, tinha a função de ponto de vigia, com uma visão totalmente privilegiada”.

Já na década de 1960, quando Serra Negra era ainda muito interiorana, simplesmente não existiam algumas possibilidades que Gunther já desfrutava em sua residência particular, como a colocação de paralelepípedos na estrada que dá acesso à entrada do terreno, peças que ele solicitou diretamente de pedreiras para implantar em sua casa.

Para Burini, a possibilidade de se ter a história materializada é um privilégio de Serra Negra: “Esse é o lance mais interessante, porque esse é um lugar que não pode ser construído, pelo simples fato de que é impossível adquirir uma propriedade e falar: ‘Olha, aqui nós vamos fazer a construção de um nazista’. Não, porque tem que ter uma qualidade e uma possibilidade históricas nisso. E é o que nós temos aqui em Serra Negra, uma casa construída por um nazista, 100% pensada por ele. Eu digo que não é uma casa, mas sim uma fortaleza, repleta de grades, e com dispositivos preventivos para a segurança de quem residia aqui - a princípio, Gunther e Maria Schouppe, e depois a filha que o casal teve, Alice Schouppe, uma figura conhecida em Serra Negra, uma pessoa presente na sociedade serrana e que ainda está viva. Há também uma história por trás disso: Alice morava nessa casa suntuosa e, hoje em dia, ela tem uma condição financeira muito diferente do que tinha quando seus pais ainda estavam vivos”.

A visita guiada à casa do nazista tem a duração média de duas horas, e para fazê-la, o interessado deve entrar em contato com o próprio historiador e agendar a data, podendo ser individual, ou em grupo, incluindo agremiações escolares, de pesquisadores e grupos de estudos: “Algumas pessoas querem ir até Auschwitz para vivenciar a história. É, sim, um passeio muito interessante, mas não é necessário para acessar os porões da história. Basta vir à Serra Negra e entrar em contato com uma faísca do Holocausto aqui. E grupos de escola também são recebidos. Muitos estudantes já passaram por aqui, e é muito interessante mostrar a eles que História não é uma matéria, ou um componente curricular escolar chato, mas que ela tem um engajamento muito mais profundo e vivo, e essa é uma forma de mudar essa concepção. O agendamento pode ser feito pelo Instagram @pedroburinii (com dois “is” no final), ou pelo telefone: (19) 9.9933-3670.

Além da visita guiada à casa do nazista, Pedro Burini já desenvolveu diversos outros trabalhos sobre a passagem dos nazistas por Serra Negra, como livros, documentários para o cinema, radiodocumentários, entre outros, além de participar de entrevistas para jornais, revistas e programas de televisão, como o Programa do Jô, em 2012, totalizando quase 100 publicações: “Nós mesmos já produzimos um documentário, além do Trilha dos Ratos, e do meu livro. Mas segundo os meus cálculos, existem mais de 90 publicações envolvendo esse tema, feitas por pessoas que têm interesse em contar um pouco dessa história sem preconceito, já que não se trata de algo nazista ou da defesa da ideologia. Pelo contrário, é puramente a história que precisa ser contada em sua forma mais pura, levando em conta bibliografias, documentos, fotografias, artigos de jornais, revistas, entre outras fontes que embasam nosso estudo com o que há de mais sólido acerca da temática, a fim de oferecer evidências concretas a quem está usufruindo dessa transmissão de conhecimento e bebendo dessa fonte histórica”.

“Muita gente fala, inclusive para nós, que estamos trabalhando com isso, ‘pára com isso! Para quê levantar esse assunto, e para quê continuar falando. Já faz tanto tempo’. Será que já acabou? Será que se não compararmos com o que vem acontecendo no Brasil nos últimos tempos: ‘Nós contra eles; eles contra nós’, será que isso não é uma pequena ramificação da história recente? Sete décadas atrás não é tanto tempo assim. Muita gente, ainda hoje, faz parte daquela história. E não podemos deixar essa história morrer, porque a melhor forma de ela voltar, é se um dia nos esquecermos dela” (Trilha dos Ratos, documentário, 2020).

“Quando as pessoas pensam dessa forma, corremos o risco de matar a história. Caso contrário, a própria disciplina “História” não existiria nas escolas. Ela serve não só para relembrar, mas também para observarmos os erros que foram cometidos e aprendermos com isso. Eu acredito que tudo que cai no esquecimento é algo perigoso, fadado a se repetir”, finaliza Pedro Burini.

A saída seguindo à direita da casa do nazista leva o viajante até o Alto da Serra, o segundo pico mais alto da região. Nós, porém, resolvemos ir para a outra montanha, que se projeta no horizonte. Dali mesmo de onde estamos, é possível avistar, a quilômetros de distância, enormes estruturas cobertas de lona branca que se esparramam pelo verde da montanha. À noite, as luzes faiscantes atraem os olhares de quem desce do Alto da Serra. Deixar para trás aquele endereço que nos recorda tanta agonia não nos faz esquecer ou querer apagar a história e o passado, que deve ser eternamente lembrado para não ser repetido. Contudo, a alma também precisa de descanso, e não existiria lugar melhor do que um parque florido onde repousa a calmaria para abrandar as emoções. Retornamos, assim, pela Rua Paulo Marchi em direção ao Belvedere do Lago, onde se estende o caminho da Rua Norberto Quaglio, que corta o Ribeirão do Pantaleão, até o Park Vitrine das Flores.

Você pode ouvir essa história, com a entrevista de Pedro Burini, além de ouvir os próximos episódios da série em:

Edição impressa e no portal online do Jornal O Serrano, nas próximas 2 sextas-feiras;
Na Rádio Serra Negra: FM 104,5 mHz / ou no site da rádio, sextas-feiras, às 10h (reprise, às 20h), clicando aqui;
Canal do Spotify do Jornal O Serrano, clicando aqui
*Em livro: ainda sem data para publicação.
**O documentário Trilha dos Ratos é possível ser assistido aqui.

Série Serra Negra Para os Serranos:
Roteiro e apresentação: Ibraim Gustavo Santos
Realização: Jornal O Serrano e Rádio Serra Negra
Produção: Freestory 

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