Ibraim Gustavo
Ibraim Gustavo

Jornalista, pós-graduado em Marketing, MBA em Comunicação e Mídia, e MBA em Empreendedorismo e Inovação. Empreendedor, é sócio-fundador da Freestory – A primeira plataforma do Brasil de autodescrição com storytelling, IA e IoT. Com formação em Profissões do Futuro (O Futuro das Coisas) e no Programa de Capacitação da Nova Economia (Startse). É também músico, escritor, roteirista e storyteller.

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Serra Negra Para os Serranos: Família Olivotto - O sonho realizado

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Serra Negra Para os Serranos: Família Olivotto - O sonho realizado
Capelinha recém-construída na propriedade é local de fé e reflexão para os visitantes | Ibraim Gustavo Santos
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Serra Negra Para os Serranos: Família Olivotto - O sonho realizado
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Por: Ibraim Gustavo Santos 

A primeira estaca foi finalmente presa ao chão. Depois dela a segunda e a terceira, até que dezenas delas fossem espalhadas por toda a propriedade, servindo como demarcação da terra recém-adquirida. O trabalho levaria meses para ser completado, e era só a primeira parte dele. Outras tarefas ainda viriam, até mais árduas, talvez, mas pelo menos, o local estava tomando outra forma.

O arame que revestia a cerca subia e descia, criando ondas pelos morrinhos e desenhando o caminho por onde o futuro da família percorreria. Se a especialidade era a agricultura,  a paixão de Décio Olivotto eram as madeiras. E hoje, quem visita o sítio dos herdeiros pode verificar essa verdade impressa nos quatro cantos do território, incluindo as casas e o cercado do cafezal. 

Além disso, não somente as terras, mas o talento de trabalhar as madeiras também foi herdado por um dos seus filhos, Jaime Olivotto, que hoje é proprietário da oficina e da loja de móveis rústicos feitos a partir de madeira de demolição existente no sítio: “Meu pai trabalhou com madeira desde sempre, desde que eu o conheci, ele já trabalhava com madeira. Tenho dois bisavós, que eu não conheci, que trabalharam com isso também, e alguns netos herdaram isso, e meu pai é um deles. Os irmãos dele - meus tios - faziam alguma coisa também para uso pessoal, mas não profissionalmente. Foi o meu pai que levou o serviço para o lado comercial, e eu segui o ofício dele desde o fatídico Plano Collor. Na verdade, foi por causa disso. Eu fiz uma mudança de ramo e de rumo na vida, foi uma guinada: de confecção para madeira. Reconheço que uma coisa não tem nada a ver com outra. Passei a trabalhar com meu pai, e fui aprender um pouco do ofício, pois ele já era da área da carpintaria. Foi quando em 2006 eu migrei para os móveis, achando que era a mesma coisa. A verdade é que eu tive de reaprender tudo novamente, já que se trata de outro processo, outro maquinário, tudo totalmente diferente. Apesar de ser madeira, a diferença é bastante grande: Carpintaria é esse sistema que trabalhamos aqui, mais pesado, madeira, madeira, madeira. A marcenaria é algo um pouco mais fino, mais delicado, folheado, laminado”, explica Jaime Olivotto. 

A primeira mudança de ramo - e de rumo - ocorreu nos anos 1990. E não foi a única: “Da primeira vez, era a opção que eu tinha. Como esse trabalho já fazia parte do cotidiano da família, eu já tinha conhecimento, e peguei o bonde andando. Vamos seguindo, pensei. Mas em 2005 - fizemos 20 anos agora, em maio de 2025 - precisei fazer mais uma readaptação, porque o mercado estava um pouco estagnado nessa área, e eu resolvi migrar para uma área rústica, porque eu gosto disso, gosto muito de fazer isso aqui”.

As mudanças na vida de um ser humano vão acontecendo sem, muitas vezes, ele nem se dar conta. Jaime disse: “Era a opção que eu tinha”. Muitos podem entender isso como alguém atravessando uma fase de enorme dificuldade. Outros podem olhar e pensar: “ao menos ele tinha uma opção. Ainda bem”. A história conta que os antepassados do próprio Jaime não tiveram uma opção, como salienta sua irmã, Giane Olivotto: “Só tinha uma casa velha aqui, que é aquela ali que agora está reformada, a casa onde nasci, a única de toda a propriedade. Meus antepassados usavam esta fazenda para engordar o boi e, posteriormente, tirar o leite das vacas na propriedade vizinha. Foi assim que meu pai veio para essas bandas, para roçar o pasto, fazer cerca, e para cuidar desse pedaço de terra. Antigamente, essa região toda era repleta de mato, não era assim como vemos hoje, nem estrada transitável existia. As pessoas não tinham sequer telefone ou carro, a água era de poço, para energia elétrica as propriedades possuíam um transformador, e não rede elétrica - somente quando meu pai mudou para este lugar e eu nasci é que foi instalada rede de eletricidade. Era uma vida difícil, sacrificada, não era nada fácil”.

Quando chegaram em Serra Negra, italianos e seus descendentes enfrentaram muito mais que as intempéries do tempo, como a chuva, o frio ou o calor excessivo. Era, antes de tudo, uma incerteza do futuro: “Não se sabia o que ia encontrar pela frente. Eles foram batalhadores, porque tiveram de ter muita coragem, empregar muito esforço”, salienta Giane. E foi com essa garra e esse trabalho que, a partir da chegada de seu pai à região, que a fisionomia da fazenda começou a mudar: “Meu pai plantou um pouco de café. Mas além de cuidar da terra, ele tinha outro dom: ele era marceneiro, e trabalhava com madeiramento. Posso dizer que a paixão dele era mexer com madeira, ele amava fazer isso. E o meu irmão herdou esse dom dele. Inclusive, foi ele quem fez todo o madeiramento da fazenda, das casas, cercas, entre outras coisas, exceto do alambique e do restaurante”. Giane acredita que se a fazenda onde mora e trabalha pudesse falar, ela teria muita história para contar: “Ah, teria! Bastante, viu?!”.

Os móveis de demolição

O talento de Décio Olivotto que foi transmitido ao filho foi também multiplicado por ele. Atualmente, Jaime Olivotto é capaz de transformar madeiras que estavam destinadas ao lixo em peças de extremo luxo, com arte e muito suor: “90% do material que trabalhamos é de madeira de demolição, um ofício totalmente artesanal. As grandes marcas têm uma produção em série, inclusive com MDF. Igualmente Itatiba, que possui grandes fábricas, mas que atuam no ramo seriado do negócio. O nosso trabalho é artesanal, não saem duas peças iguais daqui, por mais que você queira a mesma medida, o mais próximo possível, principalmente se for borda orgânica, não existem duas madeiras iguais. O nó é diferente, a textura é outra e, principalmente, a cor muda também. A diferença é que aqui tudo é muito exclusivo”. 

Como o próprio nome já indica, a madeira de demolição é proveniente de construções ou edificações que passaram pelo processo de demolição: ”Compramos madeiras de lei, oriundas de obras, de demolição e de desmonte de casas antigas, prédios, sítios e fazendas. Onde tiver, o que tiver, trazemos material de Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Minas Gerais. As pessoas que atuam no ramo e nos conhecem sempre nos oferecem, assim podemos garimpar pequenas quantidades, e até mesmo carga fechada, com 99% de madeira reciclada. Existem vários segmentos da demolição, com madeiras nobres que antigamente eram destinadas ao descarte, iam para o lixo, mas hoje não mais, porque não permitimos que isso aconteça, reutilizando esses materiais, transformando-os em móveis. Em alguns casos, trabalhamos com madeira de reflorestamento, mas uma linha específica de árvores, como pinus ou eucalipto. E o mais importante, não misturamos numa mesma composição, numa mesma obra, esses materiais com uma demolição. Não vendo por ‘demolição’ aquilo que não é. São linhas de móveis distintas: tem a demolição, tem o pinus e tem o eucalipto, não fazemos essa mistura para agregar valor, no intuito de, digamos, ‘vender gato por lebre’. Quando vendemos uma mesa, por exemplo, de demolição ela é 100% de demolição. Aqui no showroom temos diversos exemplos de móveis de demolição, pinus tratado que é demolição, peroba, pátina - que já era originalmente pintada na casa de onde ela veio. São madeiras nobres, mas todas de demolição”, comenta Jaime Olivotto.

Ele diz que quando uma peça chega até sua fábrica, dificilmente consegue reutilizá-la na sua integridade e no seu formato original, sendo necessário um desmonte praticamente total do item, seja uma penteadeira, uma mesa ou um armário: “Raramente a gente restaura algum móvel, não temos essa mão de obra. O nicho de restauração existe, mas nós não conseguimos atender”.

O resultado de um móvel fabricado desse material realmente impressiona, tanto pelo labor artístico, quanto pelo valor histórico e até mesmo pela durabilidade. Todavia, muita gente sequer imagina como ocorre a transformação de uma porta antiga ou de um poste de iluminação em uma penteadeira, banco de igreja ou balanço de jardim: “Primeira coisa que fazemos é tirar tudo o que se pode entender como ferragem que a peça possui, pregos e parafusos, que é a parte mais difícil, especialmente quando eles estão velhos e quebrados no interior da madeira, já que ele não pode quebrar a madeira. Nem sempre conseguimos tirar o metal inteiro da madeira, restando, muitas vezes, um pedaço dentro dela. Agora, imagina o estrago que faz numa máquina de corte, numa serra ou numa plaina, por exemplo, quando não conseguimos tirar esse pedaço de prego da peça. Causa um estrago considerável. Portanto, para que isso não ocorra, o material passa por um processo de limpeza, depois de escovação com uma escova de aço, que tira toda a fuligem, deixando  a madeira viva. Retiramos do material tudo que está podre. Muitas vezes adquirimos madeiras que ficam expostas ao tempo, não compramos apenas madeira utilizadas no interior das casas, existem os usos de dormentes, cruzetas de poste, que são essas travessas, que são madeiras tratadas, mas que possuem um tempo de uso determinado pela legislação, sendo necessárias a sua substituição de tempos em tempos e, quando vão à leilão, compramos esse material do Estado ou das das concessionárias de energia. Portanto, depois da limpeza total da peça, o que restou será aproveitado, para ser cortado e aparelhado, seguindo para o próximo passo, que é a montagem e a transformação da peça em tábuas, cortando as vigas, passando pela serra e pelo processo de desengrosso - e nessa hora encontramos os tais ‘preguinhos’ que sobraram dentro da madeira e que não retiramos no início”. Jaime calcula a duração do tempo médio para todo esse trabalho, do início ao fim, da hora em que o caminhão descarrega a mercadoria até estar pronto para vender na loja: “Em média, de uma semana a dez dias, dependendo da complexidade da peça e do trabalho. Sem contar a influência do tempo, se está mais úmido ou mais frio, por exemplo, que podem retardar os processos de acabamento e de aplicação de verniz ou cera”.

E enquanto nossa conversa acontecia, alguns artífices da fábrica trabalhavam na criação de novos itens que seriam entregues a clientes, tanto em Serra Negra bem como em todo o estado de São Paulo. O som da furadeira nos impedia de nos aproximar mais, com risco de prejudicar nossa gravação: “Isso é uma furadeira. O barulho forte nos impede de chegar mais perto para conversarmos. Além dela, tem serra, lixadeira, serra de fita - utilizadas para fazer cortes em curvas. Aqui neste espaço, temos três fábricas - incluindo duas marcenarias e outra para envernizar, encerar e fazer o acabamento final da peça - o showroom e a loja”, detalha Jaime Olivotto.

Mas é claro que nenhuma peça de um século de vida, especialmente feita de madeira, alcançaria tantas décadas sem um esforço a mais no cuidado e no tratamento por parte de quem a possui: “Ela foi bem cuidada na questão da cera. Antigamente, não existia vernizes eficientes, então o cuidado era feito, geralmente, com o uso de cera de carnaúba, que ainda hoje é usada, e óleos de peroba e de linhaça. Usava-se muito para conservação, mas através de uma manutenção periódica, de cerca de uma ou duas vezes por ano. Onde observamos que era comum a deterioração era nos fundos da peça, onde é colocada uma madeira mais fina e mais leve, e que geralmente são substituídos. Para o restante da peça, utilizamos madeiras nobres, que é extremamente difícil de sofrer ataques de bichos, além do cuidado que se tinha, esse tipo de material tem uma longa durabilidade. E para quem está em casa e possui um móvel desses, o cuidado ocorre da mesma forma. Hoje existem ceras de carnaúba em pasta, específicas e prontas para passar na madeira. Basta fazer a manutenção básica”, indica.

Quem deseja ter uma linha da história do Brasil escrita dentro de casa, pode fazê-lo a partir da aquisição de um item que tenha sido fabricado primeiramente para uma fazenda colonial do século 19, por exemplo. Porteiras, vigas, assoalhos e até mesmo senzalas inteiras podem contar uma nova história: ”Vamos juntando tudo, deixando exposto, ou conforme o cliente pede, vamos melhorando, adaptando e criando algumas peças. Desenhamos da melhor maneira possível, que se adapta ao gosto e ao espaço do cliente. O que a natureza fez, procuramos manter o mais original possível, apenas lapidamos a peça”. Jaime não sabe precisar qual o móvel de madeira mais antiga que ele possui no showroom: “É difícil dizer a você com precisão, mas tenho madeiras aqui que provavelmente tem mais de um século. Ali [apontando] há um exemplo: essa é uma peroba de demolição de um casarão que muito, provavelmente, era do século 19. Sabemos disso pelo estilo, pela estrutura, que hoje não existe mais. Eu fiz algumas restaurações de casas, em fazendas, com itens provenientes da segunda metade do século 19, ou talvez até anterior a esse período. Estamos falando de algo bastante antigo, e que se sustenta até hoje. Uma das coisas que as pessoas mais reclamam hoje em dia quando compram um móvel é que precisam comprar um novo a cada cinco ou dez anos, pois não existe durabilidade dos materiais fabricados atualmente, até porque, o móvel não é mais feito para durar, é um item mais, digamos, descartável, que acompanha a moda, inclusive: ela entra em desuso, o cliente vai substituindo em casa também. O tipo de material que eu trabalho é indicado não só para quem gosta, mas para quem busca um custo-benefício melhor, que atravessa gerações. Eu lembro dos móveis da casa da minha avó. Eu mesmo tenho na minha casa móveis antigos de Imbuia, que já alcança os seus 80 anos, portanto, quase um século”.

O café sempre protagonista

Como é o mesmo caso de inúmeras outras famílias serranas, os Olivotto também são provenientes da Terra da Bota. “O sobrenome Olivotto tem origem na Itália, onde se acredita que seja derivado da palavra italiana ‘olivo’, que significa oliveira. A natureza do nome pode ser explicada pelas grandes influências culturais e sociais do período Renascentista europeu, que traduziam as identidades e os ofícios de indivíduos e famílias”. Olivetti, Olivetto e até mesmo Silotto fazem parte da mesma raiz, porém com grafias distintas: Eles vieram da Itália por volta de 1878, mas não foi esse sítio que eles compraram assim que chegaram. Antes deste lugar, se instalaram em um sítio no Rio do Peixe, no bairro dos Rodrigues, que fica entre Socorro e Lindóia, na divisa com Serra Negra. Os imigrantes vieram para trabalhar na lavoura, cuidar do gado e do pasto, lidando com os afazeres do sítio, que era repleto de mato, com bois e vacas de leite. Nesse período, os primeiros Olivotto ainda não trabalhavam com cafeicultura. Só mais tarde meu pai deu início a essa nova atividade. Quando meu nono, João Olivotto, faleceu, meus tios ficaram com o sítio do Rio do Peixe, e meu pai ficou por aqui, numa divisão de herança das famílias Olivotto e Baratela, da minha nona, casada com meu avô, que comprou a parte dos Baratela. Já o sítio no Bairro da Serra, onde hoje está o alambique, ele adquiriu da família Leme na década de 1960, e dez anos mais tarde, meu pai, filho dele, se mudou para cá”.

Além de cuidar do gado e da terra, e de sua paixão pessoal pela carpintaria, Décio Olivotto guardava outro hobbie: fazer vinho: “Meu pai fazia vinho, ele gostava dessa bebida. E eu fazia com ele. Acontece que é muito trabalhoso produzir vinho, não é algo que você faz agora e daqui a um mês está pronto, não. Ele demora oito meses para ficar pronto, diferentemente da cachaça, que tem uma produção mais rápida. E essa era a expertise do meu sogro, que possuía uma experiência muito ampla da bebida, trabalhando com o alambique aqui no Bairro da Serra, juntamente com o Bimbo. Eles foram os primeiros que ajudaram a estabelecer a Rota Turística do Bairro da Serra, em 2003, unindo esforços com Ricardo Schiavinatto, proprietário da Nata da Serra, João Salzani, proprietário da Cachoeira dos Sonhos, e Nestor Marchi, do Sítio e Pesqueiro Bom Fim. O alambique foi o pontapé inicial disso tudo, com meu sogro fazendo cachaça com o Bimbo durante aproximadamente 30 anos, em uma parceria que deu muito certo. É interessante que depois que ele encerrou os trabalhos de produção, ao sair de casa muitas pessoas o questionavam se ele não voltaria a fazer cachaça. Segundo ele, a falta de mão de obra impedia a continuidade das atividades, um problema que se arrasta há muito tempo, não é de hoje. Foi quando meu marido e eu tivemos a ideia de montar um alambique lá em casa, produzindo em pequena escala, para vender apenas aqui no empório da propriedade (anexo ao restaurante). A princípio, a ideia era criar uma lanchonete, somente depois que ampliamos a possibilidade para se tornar um restaurante, e daí para frente, nosso trabalho só cresceu”, lembra Giane Olivotto.

Ainda como ideia embrionária daquilo que seria parte integrante do futuro Turismo Rural serrano, a antiga Rota Turística do Bairro da Serra reunia apenas meia dúzia de propriedades, que vislumbravam a possibilidade de fazer seus negócios crescerem com a vinda de turistas, especialmente a partir de grandes centros urbanos que desconhecem a produção rural, ou que a conhecem apenas por ouvir as histórias narradas por avós e bisavós, em descrições semelhantes às encontradas por aqui: “Muita gente que hoje mora nas grandes cidades têm famílias, pais ou avós que passaram pela roça, e que guardam essa memória dos antepassados trabalhando na lavoura de café. E muitas pessoas também que elas próprias trabalharam na roça também. É muito bonito: o pessoal chega aqui e se encanta. A primeira coisa que fazem é visitar o terreiro de café. Nessa época, que é da colheita, bem como durante a florada também, o cafezal fica muito bonito., e todos os visitantes podem ir até lá tirar fotos E há ainda outras atrações, como essa jabuticabeira aqui [apontando]. Existem pessoas que nunca viam o pé de jabuticaba, crianças que não sabem o que é uma jabuticabeira. E aqui, elas têm a oportunidade de subir no pé para chupar uma frutinha. Nós temos uma realidade diferente da deles: Para nós, estamos tão acostumados que nem achamos muita graça mais, pois vivemos em meio à natureza e vemos isso todo dia, toda hora. Mas para quem é de fora da cidade, é uma grande novidade, é muito diferente”..

Atualmente, o Turismo Rural em Serra Negra e na região já é uma realidade, e vem crescendo ano após ano. São inúmeros os empreendimentos que antes apenas produziam produtos, alimentícios ou não, e que nos últimos anos passaram a receber visitantes para realizar passeios e visitações. Muitos membros das famílias proprietárias desses sítios e fazendas ainda moram ali, e praticamente abrem as portas de sua própria casa para receber as pessoas e tomar um café. Se algo assim é impensável nas capitais e metrópoles brasileiras, isso é algo corriqueiro no interior: “Na verdade, o que paga as finanças do sítio ainda é o café. O alambique e o restaurante foram agregados como uma fonte de renda extra. Essa propriedade é da nossa família desde 1960, e sempre fomos cafeicultores. Porém, com o passar dos anos, nossa intenção era fazer algo diferente, e não viver somente da cafeicultura. Então, resolvemos abrir as portas para o Turismo Rural - e deu super certo. Com a cachaça que meu sogro fazia, aliada ao vinho do meu pai, nós unimos todas essas atividades. Porém, meu pai não viu isso acontecer porque ele faleceu antes. Mas era um sonho dele abrir para o público. No início achei que seria algo pequeno, mas acabou tomando uma dimensão tão grande que hoje possuímos muitos clientes, e não são só daqui de Serra Negra. Temos clientes de toda a região, além de turistas que vêm de vários lugares. Além disso, temos um grande privilégio de ter muitas pousadas ao lado do alambique, na Rota Turística, e como nem todas elas oferecem almoço, os turistas vêm almoçar aqui”.

Quis o destino que a propriedade da família que começou sua história em Serra Negra com a produção de café, se estabelecesse justamente onde hoje é a Rota Turística do Café: ”E continuamos com café. Inclusive, estamos no auge da colheita. Atualmente, a Rota é composta por 15 propriedades que atuam no segmento do Turismo Rural. Porém, começamos ainda em 2003, com poucas pessoas, apenas cinco produtores. Mas, sem incentivo, nosso projeto acabou se desfazendo. Em 2019, contudo, os produtores rurais voltaram a se organizar, e hoje oferecemos aqui no nosso caminho experiências variadas, como cachoeira, pousadas, restaurantes, pesqueiros, cafeterias, além do Bioparque e do Museu do Café, gerido por Nelson Bruni, que também foi um dos pioneiros do projeto inicial da Rota e que agora está de volta. E foi conversando com os proprietários que resolvemos abrir o alambique e o restaurante, em 2019. Mas dois meses depois, veio a pandemia de Covid-19 e tivemos de parar tudo. A nossa sorte é que não precisávamos pagar aluguel, nem dependíamos totalmente do alambique. Mas tínhamos contas para pagar, havíamos financiado a compra dos equipamentos. Ainda assim, não posso dizer que estávamos endividados, especialmente porque não precisávamos pagar aluguel. Mas foi uma enorme surpresa para todo mundo”, relembra.

A pandemia

“Boa tarde,

Nas últimas duas semanas, o número de casos de COVID-19 fora da China aumentou 13 vezes e o número de países afetados triplicou.

Atualmente, existem mais de 118 mil casos em 114 países e 4.291 pessoas perderam a vida.

Outras milhares estão lutando por suas vidas em hospitais.

Nos próximos dias e semanas, esperamos ver o número de casos, o número de mortes e o número de países afetados aumentar ainda mais.

A OMS está avaliando esse surto 24 horas por dia e nós estamos profundamente preocupados com os níveis alarmantes de disseminação e gravidade e com os níveis alarmantes de falta de ação.

Portanto, avaliamos que a COVID-19 pode ser caracterizada como uma pandemia”. 

João estava em sua última semana de descanso em Serra Negra quando combinou um café com um amigo numa padaria do centro. O assunto, assim como o da maioria dos brasileiros àquela altura, era se o novo e desconhecido vírus chegaria com força ao país ou não.

“Olha, eu acredito que não. Aqui no Brasil nós temos muito calor e poucos períodos de frio, diferentemente do que acontece na Itália, por exemplo, que é o epicentro dessa doença”, disse ele ao amigo.

Três dias depois, no domingo, 22 de março de 2020, o governo do Estado de São Paulo estabeleceu um decreto válido para todo o território paulista, determinando o fechamento de estabelecimentos públicos e comerciais pelo prazo de 15 dias - válido até 07 de abril daquele ano - impossibilitando o atendimento presencial ao público de todos os serviços, com exceção daqueles considerados essenciais, como hospitais, farmácias, supermercados, postos de combustíveis, entre outros. Era, assim, estabelecido o primeiro lockdown da pandemia, que transformaria a vida do paulista e, posteriormente, de todos os brasileiros para sempre.

O decreto 64.881/2020 estabelecia, entre outros, que: “João Dória, governador do Estado de São Paulo, no uso de suas atribuições legais [...] incluiu a quarentena (art. 2º, II), a qual abrange a “restrição de atividades [...] de maneira a evitar possível contaminação ou propagação do coronavírus”.

Com a impossibilidade de se encontrarem, além dos chamados para os cafés dos próximos anos ter esfriado, o convite de casamento que seria feito a João e à sua esposa precisou ser suspenso naquele momento, acreditando que, “se todos ficarem em casa por um mês, tudo volta ao normal”, pensava o amigo. Não voltou. Nunca mais.

A partir daquele momento, a quarentena e as recomendações de distanciamento social e de isolamento mantiveram familiares, amigos, vizinhos e colegas de trabalho afastados por um longo período que, como todos sabemos, não durou apenas 15 dias.

O trabalho para muitas pessoas passou a ser remoto, reuniões foram realizadas à distância, shows e outros eventos culturais eram transmitidos por meio das lives nas redes sociais. A vida se transformou, e a rotina de muita gente virou de cabeça para baixo.

Com o fantasma do desemprego rondando, alguns brasileiros começaram a empreender. Outros foram estudar. Há ainda aqueles que migraram para cidades do interior e de lá nunca mais voltaram.

Lembra-se do João? Pois é. Ele é um desses não raros exemplos. Morador ilustre do bairro do Ipiranga, em São Paulo, mantinha uma casa de veraneio em Serra Negra, onde passava algumas temporadas, como feriados e festas, mas depois de dez ou quinze dias, retornava à sua realidade paulistana, imersa no contexto da cidade grande. Permanecendo em Serra Negra durante os 15 primeiros dias da quarentena, não demorou para ele perceber que o prazo se estenderia. Os 15 dias se tornaram 15 meses; depois 30. E já é assim, a nova realidade no interior, há mais de cinco anos.

Com idas e vindas, decretos e mais decretos, aberturas e fechamentos constantes, tudo perdurava como uma incógnita. Pessoas morreram, milhões no mundo todo. Só no Brasil, 700 mil pessoas perderam a batalha para a Covid-19, a mais terrível enfermidade registrada nos últimos cem anos, e a maior crise sanitária do século: ”Fechou tudo. Foi uma surpresa, porque ninguém imaginava que iria durar tempo. Todos imaginavam que o período de lockdown duraria uma semana, quinze dias ou um mês. Acho que ninguém fazia ideia de que a interrupção das atividades seria tão prolongada. Além disso, ainda tinha toda a pressão da própria Covid, em si. O fato de os comércios precisarem fechar as portas, as pessoas serem vacinadas. Foi uma verdadeira tortura. Entretanto, ao mesmo tempo que para nós era difícil, sabíamos de pessoas que estavam atravessando uma situação ainda mais difícil, principalmente para quem pagava aluguel.

Apesar das dificuldades, a possibilidade de encerrar definitivamente as atividades nunca foi cogitada. Sabíamos que reabriríamos, embora não soubéssemos quando isso ocorreria. Acreditávamos que a retomada aconteceria num prazo de dias. Quando a reabertura foi autorizada, pensamos: ‘vamos começar tudo de novo’. Com a reabertura, houve uma grande demanda por parte das pessoas, que, após tanto tempo em isolamento, trancados, mesmo, desejavam sair e desfrutar de momentos de lazer. Ninguém mais queria ficar em casa, todos queriam gastar dinheiro, porque muita gente economizou durante aquele período. Outros passaram a ver que muitas pessoas guardam tanto dinheiro, mas acabaram morrendo pela Covid. De certa forma, houve uma conscientização sobre a importância de aproveitar a vida, e guardar dinheiro para quê? Vamos gastar e ser felizes”.

E Giane afirma categoricamente que o objetivo de sua família é proporcionar experiências de felicidade, lazer e descanso aos clientes: “Aqui, as pessoas não vêm apenas para almoçar, mas também para desfrutar da visita aos Móveis Rústicos, fazer uma oração na capela e participar de atividades como pesca esportiva, gratuita para os clientes, e degustação de licores e cachaças. A intenção é que o momento seja de descontração e prazer, não apenas uma refeição rápida. Temos clientes que chegam para almoçar ao meio-dia e permanecem até às quatro horas da tarde, desfrutando de todo o ambiente, inclusive aproveitando para descansar na rede que fica na parte externa do restaurante, onde as pessoas, após uns golinhos de cachaça, dormem um pouquinho [risos]. Realizamos muitas comemorações familiares, como aniversários e batizados. Eu só tenho que agradecer à população de Serra Negra e da região do Circuito das Águas, que sempre nos apoiaram. Não vivemos apenas do turismo, desde o início, quem nos apoiou são as pessoas que moram aqui. Costumo dizer que temos clientes de todas as idades, de um mês de vida a cem anos. Inclusive, excetuando o período de férias e alta temporada, aos domingos, a maioria dos nossos clientes é serrana, atingindo até os 90% de moradores locais. Em outros momentos, a proporção se equilibra entre moradores locais e visitantes, 50% a 50%, entre serranos e turistas da região. É raro não termos clientes de Serra Negra. Eu não posso reclamar, o povo daqui é muito bacana, fácil de lidar e muito tranquilo”, agradece Giane. 

Questionada se ela percebe um aumento da procura por parte de quem não mora em Serra Negra, especialmente quem vive nas metrópoles, por vivências no Turismo Rural e experiências imersivas na natureza, a empreendedora serrana acredita que sim, e diz ainda que isso é igualmente verdadeiro para os próprios moradores do município: “Na reabertura da pandemia, as pessoas passaram a ter outra visão do Turismo Rural. É um passeio diferente, pois o visitante consegue aproveitar e desfrutar do local onde ele está. Inclusive para os próprios serranos, que, quer queira, quer não, quem vive na cidade não é rodeado de tanto verde e natureza como na área rural. Aqui é um vale muito bonito, sm contar que Serra Negra está muito bonita. É a mais bela de todas”, defende.

Ao explicar como os pratos são preparados, Giane convence qualquer um a provar a comida do interior: Servimos comida caseira. Eu digo que é a comida da nona, até porque, nossos pratos são preparados apenas com temperos naturais, não usamos nenhum tipo de aditivo químico. Entre os nossos destaques estão o arroz com feijão da nona, a panceta de rolo, que faz muito sucesso, servida com uma geleia de goiabada cascão com pimenta. Essa receita, apreciada por todos. Esse é um prato que leva de cinco dias a uma semana para ficar pronto. Compramos a peça fresca ou congelada na segunda-feira. Na terça-feira, descongelamos e temperamos a panceta, absorvendo os temperos. Na quarta-feira, assamos a panceta em forno industrial por três a quatro horas, enrolada com barbante e virando-a para não queimar e para garantir que asse por igual. É nesse processo que se extrai muita gordura. Depois de enxuta, resfriamos a peça em freezer. Na quinta-feira, retiramos do freezer, picamos e dispomos em porções. No sábado e no domingo, quando a servimos, ela vai à fritadeira antes de servir. Mesmo já tendo sido assada, nós a fritamos, como é recomendado para a carne de porco, e é por isso que ela fica crocante, acompanhada com o courinho e com a gordurinha.

Além da panceta, que é um dos carros-chefes do restaurante, oferecemos outros pratos, como a tilápia em tiras. Os processos são mais simples, pois compramos o peixe já drenado, cortamos em porções, empanamos em fubá e trigo, e temperamos com um tempero especial - segredo da casa. Não posso contar o PDG, o pulo do gato [risos]. Na sequência ela vai à fritadeira para ficar crocante.

A panceta é preparada com um tempero especial, receita da minha sogra. Já a ideia da goiabada com pimenta, que acompanha a panceta, surgiu após assistir a um programa de culinária na televisão - o Globo Rural - em que eles serviam uma carne suína, que não era panceta, mas que o cozinheiro fez uma receita com goiaba cascão. Quando eu preparei o molho, fizemos um teste e todos adoraram. 

Atualmente, estamos em fase de teste com um novo prato, o pintado frito, que sequer consta no cardápio, mas já é um sucesso, pois vendemos essa opção no boca-a-boca. Também oferecemos truta e tilápia grelhada.

Após o almoço, os clientes podem desfrutar de um cafezinho, cortesia da casa, e visitar nossa lojinha, com diversos produtos para levar para casa, incluindo cachaças de diversos sabores, como amburana - a mais conhecida da propriedade - carvalho, jequitibá, jatobá, bálsamo e grápia, além de uma infinidade de sabores de licores e doces. E para quem deseja levar uma lembrança de Serra Negra, algo diferente, temos embalagens bonitas para embrulhar as cachaças”.

Há na fazenda um local muito especial, reservado para reflexão, fé e devoção. Inaugurada no primeiro semestre de 2025, a pequena capela de tijolinho à vista recepciona o público com um curioso lustre dourado no seu interior. Giane comenta que muitas pessoas entram ali para fazer suas preces: “Na verdade, aqui é o sítio São João, em homenagem aos meus dois nonos, que se chamavam João, um Belon e outro Olivotto. Quando construímos essa capelinha, meu marido e eu queríamos batizá-la com nomes diferentes eu queria batizar como Capela de São João, e meu marido, Capela de São Sebastião, isso porque, o outro sítio dele é denominado São Sebastião. Além disso, ele ainda queria dar o nome de Capela de Nossa Senhora. Então, eu falei: ‘Não! Os santos não vão brigar! Colocamos os três santos, o que deu origem ao nome oficial de capelinha de São João, Nossa Senhora Aparecida e São Sebastião. É um lugar onde as pessoas podem vir fazer uma oração e, na verdade, a primeira coisa que fazem ao chegarem aqui é ir lá para ajoelhar, rezar e agradecer. Muita gente diz que estava faltando isso aqui, que a igrejinha ficou uma graça. Estamos muito felizes com a receptividade do público. Ainda faltam alguns detalhes, mas ficou bacana, e os visitantes adoraram”.

E Giane aproveita para fazer o convite oficial: Venham com a criançada para almoçar, para beber cachaça e licor, para fazer uma oração e visitar os móveis rústicos. Todos são bem-vindos, inclusive aqueles que querem apenas tomar uma cachacinha e visitar os móveis. Temos muitos clientes que vêm para ver os móveis e acabam almoçando por aqui, e vice-versa, vem para almoçar e acaba conhecendo a loja de móveis de demolição. É muito comum morarmos num lugar tão pertinho de nós, e mesmo assim, não conhecermos esse lugar, e acabamos visitando lugares tão longe, sendo que aqui no Bairro da Serra existe um lugar tão bacana para se conhecer”, convida Giane Olivotto.

É difícil se despedir de um local onde você foi tremendamente bem recebido, e onde o perfume do café toma conta do ar. O sabor da comida caseira, e os conhecimentos adquiridos em relação aos móveis de demolição vão conosco, no paladar, na mente e no coração. Atravessando o laguinho, e vendo crianças brincando de pescar, seguimos em direção ao extremo sul do Bairro da Serra, os confins da Rota Turística do Café, onde outras duas experiências repletas de conhecimento, história e valor nos aguardam. A Fazenda Sula - Nata da Serra, e o Bioparque.

Você pode ouvir essa história, com a participação de Jaime e Giane Olivotto, além dos próximos episódios da série em:

Edição impressa e no portal online do Jornal O Serrano, nas próximas 10 sextas-feiras;

Na Rádio Serra Negra: FM 104,5 mHz / ou no site da rádio, clicando aqui, sextas-feiras, às 10h;

Canal do Spotify aqui

Em livro*: ainda sem data para publicação.

Série Serra Negra Para os Serranos:
Roteiro e apresentação: Ibraim Gustavo Santos 

Realização: Jornal O Serrano e Rádio Serra Negra 

Produção: Freestory 

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